O Medo da Felicidade
Venho tratando desse tema desde o
final dos anos 1970 e ele surgiu em minha mente de uma forma estranha e
surpreendente: de repente percebi que as pessoas, ao se apaixonarem, passavam a
viver em estado de alarme, muitas vezes em pânico, como se algo de terrível
estivesse para lhes acontecer.
Dormiam mal,
perdiam o apetite, viviam obcecadas, pensando compulsivamente no que estava
lhes acontecendo, querendo saber o tempo todo do amado e se ele ainda estava lá
pronto para dar continuidade ao relacionamento.
Isso, em princípio, não fazia o menor
sentido, pois afinal de contas se apaixonar era o anseio máximo daquelas
pessoas que, depois, por motivos duvidosos, acabavam por se afastar de seus
amados como que para se livrar desse estado de espírito próprio de quem vive
num campo de batalha e pode ser alcançado por uma bomba a qualquer momento.
Percebi depois que a sensação de
iminência de tragédia também se manifesta quando uma pessoa obtém um resultado
excepcional em seu trabalho, em suas atividades esportivas, em seus ganhos
financeiros… Ou seja, sempre que acontece alguma coisa muito boa, as pessoas
passam a se sentir ameaçadas, como se elas aumentassem as chances do
acontecimento de alguma desgraça.
Bem mais tarde constatei que esse
mesmo tipo de sensação está na raiz de todo ritual supersticioso, presente em
quase todos nós e tão antigo quanto as mais antigas civilizações: quando
questionadas acerca de como estão indo as coisas, respondem que estão indo bem
e imediatamente batem na madeira, como que se protegendo contra a inveja dos
humanos e a ira dos deuses.
O medo da inveja, do “olho gordo”,
estava presente no Egito antigo, em que as mulheres estéreis eram proibidas de
olhar o ventre das que estavam grávidas, porque isso seria nocivo ao feto.
O medo da felicidade tem uma
correlação direta com nossas tendências destrutivas: ao nos depararmos com a
aflição que o sucesso provoca, tendemos a estragar uma parte do que
conquistamos com a finalidade de preservar o principal: tendemos a raspar o
paralama do carro novo para, com isso, diminuir a felicidade por ter podido
adquiri-lo!
Muitos dos que tomam uma porção de
pinga num bar despejam uma pequena parte – “para o santo” – e isso parece ser
uma espécie de pagamento feito à divindade para que possam se deliciar com aquele
prazer e bem-estar.
Freud, para tentar explicar nossas tendências agressivas e
autodestrutivas acabou por formular a hipótese de que existe em nós uma “pulsão
de morte”, um impulso permanente e definitivo que opera contra nós.
Penso que os mecanismos que sabotam
nosso bem-estar são indiscutíveis, mas não concordo com a ideia de que
possuímos uma força que nos impulsiona na direção da morte.
Tenho pensado cada vez mais no
nascimento como um evento marcante e extremamente
traumático, seguindo os passos de um psicanalista, discípulo e depois
dissidente de Freud, que foi O. Rank.
Para ele, o nascer é uma transição para pior, a “expulsão do paraíso”
que correspondia à simbiose materno-fetal.
A ruptura dramática dessa condição de
harmonia é vivenciada como um estado de pânico, manifesto claramente no rosto
do que acaba de nascer. Assim, nosso primeiro registro cerebral é o da harmonia
e o seguinte corresponde à dor da ruptura e o surgimento da sensação de
desamparo que, de alguma forma, irá nos acompanhar por toda a vida.
Prefiro atribuir a essa vivência
traumática, que se fixa em nossa mente de forma
definitiva, a existência de tendências sabotadoras de nosso bem-estar e que nos
acompanham por toda a vida.
Penso na formação de uma espécie de
reflexo condicionado, de modo que, ao nos aproximarmos de um estado de harmonia
e bem-estar semelhante ao que experimentamos no útero – e nada é mais parecido
com isso do que o aconchego que acompanha um encontro amoroso de qualidade –
imediatamente nos sentimos ameaçados, como se outra vez uma hecatombe viesse a
nos atormentar; agora pensamos que a harmonia irá nos trazer a morte,
destruindo nossa recém conquistada felicidade.
Associamos a paz uterina à sua
destruição, de modo que tememos o estar bem por temermos suas consequências
nefastas.
A lógica dos processos psíquicos é
peculiar, de modo que deve ser procurada de uma forma própria.
Se perguntarmos às pessoas que nunca
se viram numa situação de grande felicidade se elas sentiriam medo, é claro que
a maioria delas responderia negativamente.
Porém, a verdade é que esse medo é
universal e nunca conheci alguém que não o tivesse em alguma dose.
Aprender a conviver com ele e a não
fugir das situações em que ele aparece corresponde a um ato de coragem
adequado.
Afinal de contas, apesar da aparência, felicidade não mata!
Dr. Flavio Gikovate
(In-Memoriam)
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Fonte de consulta: http://flaviogikovate.com.br/o-medo-da-felicidade/